Dos pequenos desvios de caráter
Cena 1: fila do supermercado. À minha frente, casal com filho aparentando não ter mais que um ano e meio. O pai pega uma garafa de suco do carrinho, abre, toma, passa para a esposa, que toma e dá um gole para o menino.
Até aí, nada de mais. É perfeitamente comum abrir embalagens e comer ou beber o conteúdo enquanto fazemos as compras no supermercado. Assim como é comum passar a embalagem pelo caixa e pagar.
Garafa pela metade e se aproximando da vez de entrar no caixa, o pai percebe que existe um refrigerador de refrigerantes ao seu lado. Disfarça, olha para um lado e para outro, encosta-se no refrigerador, abre o quanto baste a porta e lá coloca o que restou do suco. Ato contínuo vira-se para mim e percebe que eu havia visto o ato.
Seguiu em frente e, com certeza, pensando: “esse mané não deve ter visto nada”.
O jogo dos dois erros: um erro certo e outro errado? Um escusável e outro imperdoável? Qual dos dois apresentou um desvio de caráter?
Caberia a mim denunciar o ocorrido? Que provas eu teria de que foi ele a ter se aproveitado para beber um suco “de graça”? Ou, dito de outra forma, furtado algo do supermercado?
Cometi um erro escusável ao ter ficado calado? Tenho um desvio de caráter a merecer um tratamento? Certamente esse cidadão (será?) cometeu um erro imperdoável. Certamente apresenta um desvio de caráter. E o desvio se caracteriza por ele saber que estava fazendo algo errado. E perceber que foi flagrado e mesmo assim ter finalizado o furto.
Cena 2: ampliemos o ambiente do furto. Em vez de um supermercado, pensemos no país. E troquemos o suco de oito reais por milhões, bilhões de reais. Sequer precisamos pensar em joias ou relógios. Podemos pensar em quem vende uma cidade, por exemplo. Ou, se quiserem, nos bilhões do rentismo, dos bancos, das offshores, das sonegações, nos tão somente 51 brasileiros, bilionários – com mais de US$ 1 bilhão de fortuna (Forbes, aqui e aqui) e em todo furto que mantém 33 milhões de brasileiros passando fome.
Mas para esses não dizemos que apresentam um desvio de caráter.
Mas uma coisa é certa: todos, um dia, começaram furtando um suco no supermercado.
Pelo hábito, o desvio de caráter deixou de ser desvio. E estamos tão entorpecidos socialmente, que pensamos ser apenas um erro escusável não denunciar.
E todos votamos. E não por outra razão nossos legislativos e executivos estão cheios de “representantes”. Representantes que espelham nossos desvios de caráter.
Os pequenos e os grandes!
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